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Jurados de morte — e de vida.
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Jurados de morte — e de vida.

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Texto escrito por Matheus Henrique, de Curitiba. Você pode criticar meu texto pelo meu e-mail mathenriquew@gmail.com. Desejo-lhe boa leitura!

Aviso. Nono parágrafo da Parte II modificado pelo autor em 18/11/2022, às 5h. Adendo adicionado em 18/11/2022.


Jurados de morte — e de vida. Parte I.

Neste texto, pretendo opor uma objeção à opinião do professor Cosme Massi a respeito do n.º 853 do Livro dos Espíritos, que pergunta e afirma que:


“— Algumas pessoas só escapam de um perigo mortal para cair em outro. Parece que não podiam escapar da morte. Não há nisso fatalidade?

“— Fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é. Chegado esse momento, de uma forma ou de outra, a ele não podeis furtar-vos.”

A interpretação de Cosme Massi, segundo a entendemos, poderia se apresentar nas seguintes sentenças:

A palavra “instante” aqui designa não um momento entendido como horário ou data, mas sim como o momento de “consumação” da mortalidade, o momento de atuação de causas suficientes para operar a morte.

A afirmação de que um horário ou data seriam fatais implica a violação da lei de liberdade, pois um assassínio, por exemplo, se cometido, ter-se-ia provado providencial e mesmo inevitável.

Sem pretender dar, assim, justa representação das ideias do professor, quero propor que um entendimento do “instante” como “data e/ou horário” é não apenas possível, como também a interpretação mais provável.

Parênteses. É a segunda vez que publico um texto neste ambiente (e em qualquer ambiente), e a segunda vez que assim procedo para discordar — e não será a última. Na verdade, escrevo por discordar. Se assim faço, é apenas porque seria supérfluo repetir aquilo com que concordo. Portanto, que não se veja, de minha parte, qualquer obstinação por discordâncias, sobretudo quando me oponho a quem tanto admiro.

Bem; voltando ao nosso assunto, quero começar pelo que julgo principal: o próprio Kardec entendeu o “instante” como “data ou hora”. Perguntou ele, em sequência:

“Assim, qualquer que seja o perigo que nos ameace, se a hora da morte ainda não chegou, não morreremos?”

Levemos o questionamento a uma agudeza extrema. Observemos que a pergunta parte da certeza de que não seria por si mesmo absurdo afirmar:

1. Que se pode morrer fora da “hora da morte”.

2. Que não se pode morrer fora da “hora da morte”.

Se alguma dessas alternativas fosse por si mesma absurda, a pergunta seria absurda, porque tais alternativas são as únicas respostas possíveis. Ou se afirma, ou se nega, e quem pergunta admite a possibilidade da afirmação e da negação.

O que importa agora: Se o instante da morte (que equivale a “hora da morte”) fosse o momento de consumação em si mesmo, esta pergunta seria mais ou menos o seguinte:

Assim, qualquer que seja o perigo que nos ameace, enquanto não atuarem causas suficientes para produzir a morte, não morreremos?

Isto é absurdo. Por que Allan Kardec perguntaria algo assim? Se os Espíritos respondem que não, dizem o óbvio. E não poderiam dizer que sim, pois incorreriam em contradição radical (afirmando um efeito sem causa), ou pelo menos dariam uma natureza sobrenatural à causa mortis. Ora, ambas as coisas são racionalmente impensáveis. Por que Kardec cogitaria algo que não é sequer pensável? Já eu mesmo disse que Kardec procede, muitas vezes, uma retórica de entrevistas, cogitando algo que já sabia ser falso. No entanto, Kardec aqui teria perguntado como: Enquanto o cão não tiver latido, não terá latido?

Vejamos a outra interpretação possível:

Assim, qualquer que seja o perigo que nos ameace, se não for o dia previsto, não morreremos?

“Não; não perecerás, e tens disso milhares de exemplos. Quando, porém, soe a hora da tua partida, nada poderá impedir que partas. Deus sabe de antemão de que gênero será a morte do homem e muitas vezes seu Espírito também o sabe, por lhe ter sido isso revelado, quando escolheu tal ou qual existência.

Veja-se que a resposta guarda muito mais sentido com a segunda formulação da pergunta. Mas o mais importante é que a pergunta não implica nenhuma contradição lógica, e portanto não é absurda. Quanto às complicações sugeridas pela terceira frase, trataremos indiretamente delas no próximo texto, quando penetrarmos nas implicações filosóficas de nossa constatação interpretativa, provando que a fatalidade da morte não contraria a liberdade do Espírito.

Jurados de morte — e de vida. Parte II.

Prometêramos, em artigo anterior, provar que uma predeterminação da data da morte não infirmaria a liberdade do homem.

Cumpre-nos, portanto, dar a natureza de tal predeterminação.

Sem pretender minúcias impossíveis, digo apenas que a predeterminação se faz de alguma forma entre Deus e os Espíritos, assim como entre eles se decide uma encarnação. Então, se, sob orientação e permissão divina, um Espírito decide que deverá morrer em determinado dia, por exemplo, ele não morrerá antes de tal dia.

É imutável a prefixação da data? É evidente que não; apenas uma causa imutável pode ter efeitos imutáveis. O Espírito é mutável e é uma das causas dessa prefixação. Por que não poderia o Espírito apelar à divindade e desviar o curso de sua existência? Por mais distorcidos que sejam os relatos de experiências espirituais em eventos de ressuscitação, não contêm verdade, muitas vezes, quando descrevem solicitações e permissões para continuidade da vida material? A fatalidade do prefixado é tão imutável quanto qualquer decisão espiritual sobre a vida material. No entanto, seriam casos excepcionalíssimos, considerando que o prazo para cumprimento de uma prova é parte dela.

Mas seria tolice, ao mesmo tempo, afirmar que tais predestinações sejam sempre muito precisas. Se um homem cai em um vulcão, ele morre pelo que sofre lá dentro, e não porque a sua hora de morte coincidiu com a queda no vulcão; se não tivesse caído, não teria morrido. Então, se não tivesse caído no vulcão, teria morrido em outro momento, embora não pudesse durar muito mais. Tampouco podemos pensar que ele não podia não ter caído no vulcão. É pacífico que não há fatalidade nos atos da vida moral, e sua ida ao topo do vulcão depende de um pensamento, isto é, de um ato moral. Assim, embora o momento da morte seja fatal, os encadeamentos particulares que nela culminam são independentes. Os Espíritos, que são os agentes de Deus, se encarregam de modificar as circunstâncias para favorecer a morte, às quais o homem pode tender, por uma espécie de instinto. (Eles agem sempre através dos homens, e não por ação direta sobre a matéria. N.º 526. Diríamos que há uma exceção quando consideramos sua ação sobre o corpo material.)

Ainda corroborando essa opinião, temos a situação de pessoas que resistem à morte para rever um amigo antes do decesso.

(Outro caso interessante de “liberdade na fatalidade” está na lei do Espírito protetor, como nos ensinou o professor que é o principal destinatário deste texto. Infalivelmente temos um Espírito protetor, mas todo Espírito protetor no-lo é espontaneamente.)

Desse ponto de vista, haveria uma “janela” de tempo entendida como a “hora da morte”, dentro da qual, e apenas dentro da qual, o homem infalivelmente morrerá — salvo o caso, que a razão nos manda admitir, de mudança de planos.

Assim, se um homem, que foi hoje assassinado, não o fosse, morreria em momento próximo, mas, admitamos, por outra causa. Mesmo que seja de um segundo, essa “antecipação” da morte pode prejudicar a vítima, privando-a, por exemplo, da oportunidade de arrepender-se de um mal, e por isso a pena à consciência do agressor não é atenuada; ainda que desprezemos esse fato, o homicida continuará culpado, porque será julgado de acordo com o que sabia, e não poderia jamais saber se a vida de outro homem deveria cessar. Aliás, se tal coisa fosse possível, não ficaria implicada sua participação na morte do outro, mas bem ao contrário. Também seria absurdo achar que, dada tal fatalidade, a prudência seria dispensável. Embora, no que toca à morte, ela seja um pouco afetada, podendo ser “recentralizada” mais para lá entre a escrupularia e a obtusidade (vejo-a assim), seu papel resta intacto na preservação da saúde e do bem-estar.

Não é difícil encontrar de quê morrer. O coração palpita por acaso. A morte é a cada segundo nosso destino mais provável. A perduração da vida humana é efeito de um longo e inexplicável esforço. Assim, não é difícil conceber que, se devo morrer hoje, qualquer coisa venha, sem surpresa, a tirar-me a vida.

Antes de, como pretendo, dar um resumo das ideias que ora apresento, quero comentar outra coisa: a fatalidade da vida material, em oposição à fatalidade da vida moral (que não existe).

Com nova divergência interpretativa, constatamos que o Cosme, a respeito da “vida material”, entende que a fatalidade consiste da sucessão dos fatos tais como determinados pelas leis materiais. Mas não é este o sentido que os Espíritos pretendiam. Com “fatalidade na vida material”, eles se referiam a um conjunto de eventos como o nascimento, os gêneros de prova, e o momento da morte. (Veja-se a nota adiante.)

A morte é um evento material, e, como tal, está subordinada às leis de fatalidade da vida material. Trata-se de uma dimensão um pouco mais complexa do que o mero desenrolar das coisas físicas. Defino provisoriamente a “vida material”: Conjunto dos eventos mais vitais de uma encarnação.

Poder-se-ia objetar que qualquer um poderia, então, atentar contra o próprio corpo (ou o de outrem) sem prejuízo de sua “vida material”. Concedo. Conheço mesmo o caso de um homem que teve dezenas de tentativas de suicídio inexplicavelmente fracassadas. Mas, relembro: ninguém pode julgar-se na função de tirar uma vida. Mesmo que um suicida logre tirar a sua, o que confirma que deveria morrer perto de tal tempo, ele sofrerá as consequências de seus pensamentos e ações.

Façamos um resumo, com alguns incrementos úteis.

1. O Espírito escolhe, antes de encarnar, seu nascimento, suas provas e o momento de sua morte*. Isto fica em seu destino. Para mudá-lo, precisaria tomar nova decisão em condições mais favoráveis do que tivera antes — livre das amarras da encarnação corrente, o que torna a mudança praticamente impossível. (Assim como respeitamos a opinião de um amigo sóbrio, e desprezamos seus disparates, se ébrio.)

2. Sua morte ocorrerá no momento decidido, necessariamente, por um agente fortuito, de força destrutiva não contida ou até induzida. Esta força tem uma razão intrínseca, isto é, não se move de maneira sobrenatural, mas segue seu próprio curso, embora seja destrutivamente favorecida por encarnados e desencarnados.

3. O bom senso nos diz que o momento da morte deve ser de precisão variável, assim como podemos saber, em condições normais, e com maior ou menor precisão, em que momento iremos almoçar, por exemplo.


* Quem escolhe o todo, escolhe as partes; pelo menos por isso digo que a morte também é, em aspectos, escolhida. São Luís aqui nos dá razões, entendendo a morte como uma fase essencial da existência (Rev. esp., março de 1858, “A fatalidade e os pressentimentos. Instruções dadas por São Luís.”), e portanto conhecida desde sempre:

São Luís. — “Entendo que, antes de encarnar-se, o Espírito tem conhecimento de todas as fases de sua existência. Quando essas fases têm um caráter essencial, ele conserva uma espécie de impressão em seu foro íntimo, e tal impressão, despertando ao aproximar-se o instante, torna-se pressentimento.” (Premissa oculta: Toda morte é uma fase essencial da existência. Demais, convém observar que ele tratava do caso de uma morte acidental.)

Allan Kardec. — “Nota. As explicações acima se referem à fatalidade dos acontecimentos materiais. A fatalidade moral é tratada de maneira mais completa no Livro dos Espíritos.” (Em abono ao que dissemos.)

A escolha, pelo Espírito, que afirmo, do momento da morte, se dá direta ou apenas indiretamente? Isto é, tendo escolhido seu corpo e suas provas, o Espírito tem a liberdade de definir qualquer momento para em que morrer, ou cada corpo já tem predefinida uma hora de morte? Importante: ficam inclusas aqui as mortes acidentais. Esta é uma questão difícil, que não quero examinar aqui. Aos leitores que tenham contato com os Espíritos, pediríamos que os solicitassem a respeito, e nos informassem sua resposta por e-mail, se não for abuso de sua boa vontade.


Tudo quanto dissemos nesta Parte II decorre naturalmente da observação comum, de informações da doutrina, e da opinião relativamente fatalista manifesta pelos Espíritos no Livro dos Espíritos, como provamos que o fizeram, no texto anterior. No próximo texto, traremos um último “argumento”, menos lógico e mais concreto.

Somente, para concluir, quero antecipar objeções bem fundamentadas:

Primeiro fundamento.
“856. Sabe o Espírito antecipadamente de que gênero será sua morte?

“— Sabe que o gênero de vida que escolheu o expõe mais a morrer desta do que daquela maneira. Sabe igualmente quais as lutas que terá de sustentar para evitá-lo e que, se Deus o permitir, não sucumbirá.”

Objeção.
Aqui fica evidente que a morte pode dar-se a qualquer momento.

Resposta.
Não concedo. O gênero de morte é indefinido, mas não o momento. Leia-se, o que é lícito, o “se” como “enquanto”, e tudo ficará mais claro.

Segunda objeção.
Entretanto, a pergunta deixa claro que a vontade de Deus não é suficiente para preservar a vida do homem, senão também que é necessária a luta deste.

Resposta.
Veríamos nisso súbita passagem de um caso geral para um caso muito específico, em que a preservação da vida encerraria uma prova. Logicamente, se este é o caso, pode haver morte a qualquer momento, por falha na missão de sobreviver. Mas, então, é que aquela “janela” é muito mais larga desde sempre.

Terceira objeção.
Tal prova poderia ser uma prova secundária para todos os homens.

Resposta. Todos os homens estão assim em situações tão extremas? Tantos são os que carecem da força e da inteligência para sobreviver? É necessária a luta: mas a luta nem sempre é uma prova. (Veja-se, sob o n.º 853, o n.º 854.)

Segundo fundamento.
“861. Ao escolher a sua existência, o Espírito daquele que comete um assassínio sabia que viria a ser assassino?

“— Não. Escolhendo uma vida de lutas, sabe que terá ensejo de matar um de seus semelhantes, mas não sabe se o fará, visto que ao crime precederá quase sempre, de sua parte, a deliberação de praticá-lo. Ora, aquele que delibera sobre uma coisa é sempre livre de fazê-la, ou não. Se soubesse previamente que, como homem, teria que cometer um crime, o Espírito estaria a isso predestinado. Ficai, porém, sabendo que ninguém há predestinado ao crime e que todo crime, como qualquer outro ato, resulta sempre da vontade e do livre-arbítrio.

“Ademais, sempre confundis duas coisas muito distintas: os sucessos materiais da vida e os atos da vida moral. A fatalidade, que algumas vezes há, só existe com relação àqueles sucessos materiais cuja causa reside fora de vós e que independem da vossa vontade. Quanto aos atos da vida moral, esses emanam sempre do próprio homem que, por conseguinte, tem sempre a liberdade de escolher. No tocante, pois, a esses atos, nunca há fatalidade.”

Objeção.
Pela frase em destaque, patenteia-se que um ato assassino sempre pode levar-se a efeito, independentemente de qualquer resolução anterior.

Resposta.
Não concedo, pois o homem pode apenas tentar um assassínio, e não levá-lo, necessariamente, a cabo. Toda vontade assassina é mediata. A consumação é um sucesso material cuja causa imediata reside fora do Espírito: ele se serve de instrumentos que não se seguirão necessariamente à sua vontade. Isso não o exime da culpa em caso de sucesso, como já dissemos.

Fora esses dois números mais delicados, nossa tese encontrará confirmação no número 853, de forma integral; no 854; no 857; no 859; no 860, apenas para mencionar os números do tópico “Fatalidade”, no Livro dos Espíritos. Caso algum amigo queira contribuir em uma coleção de referências, deixo meu e-mail à disposição. (Converterei o que puder em sugestões de relacionamentos na Kardecpédia.)

Jurados de morte — e de vida. Parte III.

Copio, da Revista espírita, tal como apresentada na Kardecpédia (mas com destaques nossos), a seguinte mensagem, ditada pelo Espírito do Dr. Demeure, a 23 de abril de 1866, em Paris, pelo médium sr. D., bem como as respostas de Kardec. Farei comentários ao fim. Em resumo, mostrarei não apenas que Kardec refletia em sua vida a opinião que estamos expondo, como também que ele parece ter tido razão.

Instruções para o Sr. Allan Kardec.

“(Paris, 23 de abril de 1866 — Médium: Sr. Desliens.)

“Enfraquecendo dia a dia a saúde do sr. Allan Kardec em consequência dos excessivos trabalhos que ele não pode suportar, vejo-me na necessidade de lhe repetir novamente o que já lhe disse muitas vezes: Necessitais de repouso; as forças humanas têm limites que o vosso desejo de ver progredir o ensino muitas vezes vos leva a infringir; estais errado porque, assim agindo, não apressareis a marcha da doutrina, mas arruinais a vossa saúde e vos pondes na impossibilidade material de acabar a tarefa que viestes desempenhar aqui em baixo. Vossa doença atual não é senão o resultado de um gasto incessante de forças vitais que não deixa ao organismo o tempo de se refazer e de um aquecimento do sangue produzido pela absoluta falta de repouso. Nós vos sustentamos, sem dúvida, mas com a condição de não desfazerdes o que fazemos. De que serve correr? Não vos disseram muitas vezes que cada coisa viria a seu tempo e que os Espíritos prepostos ao movimento das ideias saberiam fazer surgir circunstâncias favoráveis quando chegasse o momento de agir?

“Quando cada espírita recolhe suas forças para a luta, pensais que seja vosso dever esgotar as vossas? Não. Em tudo deveis dar o exemplo, e o vosso lugar será na liça, no momento do perigo. Que faríeis se vosso corpo enfraquecido não mais permitisse ao vosso espírito servir-se das armas que a experiência e a revelação vos puseram nas mãos? — Crede-me, deixai para mais tarde as grandes obras destinadas a completar a obra esboçada em vossas primeiras publicações; vossos trabalhos atuais e algumas pequenas brochuras urgentes têm como absorver o vosso tempo e devem ser os únicos objetos de vossas preocupações atuais.

“Não vos falo apenas em meu nome, pois sou aqui delegado de todos esses Espíritos que contribuíram tão poderosamente para a propagação do ensinamento por suas sábias instruções. Eles vos dizem, por meu intermédio, que essa demora que julgais prejudicial ao futuro da doutrina é uma medida necessária sob mais de um ponto de vista, seja porque certas questões não estão ainda completamente elucidadas, seja para preparar os Espíritos para melhor as assimilar. É preciso que outros tenham preparado o terreno; que certas teorias tenham provado a sua insuficiência e cavado um vazio maior. Numa palavra, o momento não é oportuno; poupai-vos, pois, porque quando for tempo, todo o vosso vigor de corpo e de espírito vos será necessário. Até aqui o Espiritismo foi objeto de muitas diatribes; levantou muitas tempestades! Credes que todo o movimento esteja amainado e todos os ódios estejam acalmados e reduzidos à impotência? Desiludi-vos, pois o cadinho depurador ainda não expurgou todas as impurezas; o futuro vos guarda outras provas e as últimas crises não serão menos difíceis de suportar.

“Sei que vossa posição particular vos suscita uma porção de trabalhos secundários que absorvem a melhor parte do vosso tempo. As perguntas de toda sorte vos cansam, e considerais um dever respondê-las tanto quanto possível. Farei aqui o que sem dúvida não ousaríeis fazer vós mesmo. Dirigindo-me à generalidade dos espíritas, eu lhes pedirei, no interesse do próprio Espiritismo, que vos poupem toda sobrecarga de trabalho de natureza a absorver instantes que deveis consagrar quase que exclusivamente à conclusão da obra. Se vossa correspondência com isto sofre um pouco, o ensinamento lucrará. Às vezes é necessário sacrificar satisfações particulares ao interesse geral. É uma medida urgente que todos os adeptos sinceros saberão compreender e aprovar.

“A imensa correspondência que recebeis é para vós uma fonte preciosa de documentos e de informações; ela vos esclarece quanto à marcha verdadeira e os progressos reais da doutrina; é um termômetro imparcial; vós aí colheis, por outro lado, satisfações morais que mais de uma vez sustentavam a vossa coragem, vendo a adesão que vossas ideias encontram em todos os pontos do globo. Sob esse ponto de vista, a superabundância é um bem e não um inconveniente, mas com a condição de secundar os vossos trabalhos, e não de entravá-los, criando-vos um excesso de ocupações.”

Allan Kardec responde, com objeção:

Bom sr. Demeure, eu vos agradeço os sábios conselhos. Graças à resolução que tomei de obter ajuda, salvo nos casos excepcionais, a correspondência ordinária pouco sofre agora e não sofrerá mais no futuro. Mas o que fazer com esse atraso de mais de quinhentas cartas que, a despeito de minha boa vontade, não consigo pôr em dia?

“Resposta. — É preciso, como se diz em linguagem comercial, passá-las em bloco à conta de lucros e perdas. Anunciando esta medida na Revista, vossos correspondentes saberão o que fazer; compreenderão a necessidade e a encontrarão sobretudo justificada pelos conselhos que precedem. Repito que seria impossível que as coisas continuassem assim por mais tempo. Tudo sofreria com isso, inclusive a vossa saúde e a doutrina. Caso necessário, é preciso saber fazer sacrifícios. Tranquilo, de agora em diante, sobre esse ponto, podereis entregar-vos mais livremente aos vossos trabalhos obrigatórios. Eis o que vos aconselha aquele que será sempre vosso amigo devotado.

Allan Kardec conclui, já se dirigindo aos leitores da Revista:

Atendendo a este sábio conselho, rogamos aos nossos correspondentes com os quais há muito estamos em atraso, recebam as nossas desculpas e o nosso pesar por não ter podido responder em detalhe, e como teríamos desejado, às suas bondosas cartas. Receberão aqui, coletivamente, a expressão de nossos sentimentos fraternos.”

Em 1866, Allan Kardec acabara de enfrentar gravíssima doença, que lhe deixara sintomas permanentes, e recebia conselhos dos Espíritos a que diminuísse seu trabalho. E mais uma vez estava doente. Ainda assim, seguia em “absoluta falta de repouso”. A comunicação acima indica mais a procedência de uma mudança na natureza dos trabalhos do que propriamente no grau de esforço, em que Allan Kardec parecia irredutível. Diríamos ter sido um acordo pelo meio-termo.

Não havia temor por uma morte antecipada, mas apenas de prejuízo qualitativo da doutrina e de preservação do mínimo bem estar de Kardec.

E, bem, em março de 1869:

“No fim da última sessão o presidente fizera suas despedidas; preenchida a missão, retirava-se da luta cotidiana, para se consagrar inteiramente ao estudo da filosofia espiritualista.” (Journal de Paris, 3 de abril de 1869; por Pagès de Noyez, citado em Allan Kardec, de Edson Audi.)

Allan Kardec se sacrificou dia após dia, mas só morreu no último.

Jurados de morte — para a vida. Parte IV. Final.

Recapitulando, nas partes anteriores eu:

I. Provei, por substituição de definido por definição, e depois por redução ao absurdo, que, dentre duas alternativas, o “instante da morte” constante no n.º 853 só pode ser algo como uma data, mais ou menos precisa.

II. Mostrei, a partir dessa nova leitura do n.º 853, que a fatalidade da vida material é uma lei a outras irredutível e harmônica, servindo-me de problemas concorrentes: o do livre arbítrio, o da escolha de provas, o da intervenção dos Espíritos no mundo corporal, o das ideias inatas, o da Providência, e o da contingência da vontade. O crucial foi distinguir o gênero de morte do momento da morte, e ver neste alguma flexibilidade.

III. Mostrei que Kardec, não tendo mais nenhuma saúde para arriscar, confiou a vida e a missão no princípio da fatalidade dos acontecimentos materiais.

Agora:

IV. Quero apresentar um corolário moral de tudo quanto disse nos textos anteriores:

É absurdo cogitar o suicídio, pois o homem não é senhor da própria vida.

Pela crença no suicídio, o homem passa, só por isso, a alimentar sentimentos destruidores, que o torturam moral e fisicamente. Se ele arrancar de seu espírito a crença em uma fuga, a vida se lhe afirmará com uma força arrebatadora, e será ele próprio a própria vida.

Se o Espiritismo veio combater os preconceitos, para restabelecer a verdade, eis que mais um deles é destruído. Propague-se esta verdade, ilustre-se ela com os constantes exemplos de tentativas fracassadas, e se verá agir o mais absoluto antídoto contra a depressão e a vontade do suicídio.


Nota. Nono parágrafo da Parte II modificado pelo autor em 18/11/2022, às 5h. Adendo abaixo adicionado em 18/11/2022.


Adendo. Explicações posteriores primordiais e respostas:

1. Existe um elemento potencialmente complicador para essa discussão como um todo, que é o problema da presciência divina. Para mim, ele é de uma dificuldade sobre-humana, porque me é impensável uma previsibilidade sem uma predeterminação. Por isso penso que o problema da fatalidade, para ser produtivo, deve ser meramente prático, e não procurar fazer nada mais do que discernir aquilo que depende do livre arbítrio, daquilo que dele não depende. Falo do livre arbítrio concretamente considerado, com todas as suas limitações. (Estude-o aqui, em videoaula, com Cosme Massi, e aqui, em texto, com Daniel Araújo Lima.) Numa palavra: erraremos se entendermos como "fatal" aquilo que Deus prevê, pois, prevendo ele todas as coisas, tudo seria fatal. Como os Espíritos não responderam que tudo é fatal, é evidente que eles não cometeram esse erro de perspectiva, o que não é nenhuma surpresa.

Em suma, esse é o procedimento mais simples e seguro: identificar como "fatal" aquilo que não pode ser desviado por nenhum livre arbítrio. Assim as questões rendem, e não encontramos dificuldades desnecessárias e desproporcionais à natureza do Espiritismo.

2. Deixei passar uma coisa de grande importância no n.º 853. Os Espíritos dizem: “chegado este momento, de um jeito ou de outro, a ele não podeis furtar-vos”. Isso está em perfeito acordo com a tese da fatalidade. Ainda com o olhar da não fatalidade, eu me precipitei a ler que não podemos nos furtar à morte nem de um jeito, nem de outro. Mas com nova atenção me pareceu evidente que este "de um jeito ou de outro" é o como chega o instante. É exatamente o que explicitei depois: que o gênero é indeterminado, mas o momento é determinado. "Instante" foi uma palavra imprecisa, que Kardec substituiu na sequência, embora "hora da morte" continue sendo imprecisa. É preferível dizer “momento da morte”; nunca sabemos com quanta exatidão a morte é determinada.

3. Questão. Como se entendem, pelo que aqui consta, os casos de "desencarnes coletivos", como assim se designam?

R. Simplesmente assim: Embora a expectativa de vida por morte natural seja longa, não poucas pessoas têm um prazo mais curto. Essas pessoas têm de morrer de alguma forma, e fatores como seu instinto espiritual e a hostilidade do meio as levam a encontrar sua morte no momento previsto. Tomemos um acidente por negligência como exemplo. Ele não vitimará ninguém que já não devesse morrer — o que não significa que elas “deviam” morrer desta forma, ou que não tivessem a ganhar com mais algum tempo de vida, por menor que fosseA consciência cumpre seu papel; e os homens, por outro lado, também impõem suas sanções. Mas, quanto aos “desencarnes coletivos” como um fato, não devem ser motivo de espanto. A cada dia, várias crianças nascem no mesmo hospital, às vezes no mesmo momento. Por que a morte há de ser sempre isolada? Tampouco se implica aqui qualquer vínculo entre as pessoas, ou com um modo de morrer em particular.

4. Questão. Não ficou explicada a terceira frase da resposta do item 853-a.

R. Deve fazer-se distinção entre o Deus que prevê e o Deus que decide. Se previsão fosse decisão, não haveria livre arbítrio, desde que Deus tudo sabe. Deus decide o momento da morte, mas apenas prevê seu gênero. Como eu já disse, isso me parece incompreensível, mas os fatos me calam: já vi casos de previsões de morte precisas às minúcias. Tenho a razão de um lado, e os fatos do outro. A doutrina não sofre das minhas dificuldades.

5. Questão. Não ficou claro o que foi dito acima sobre a prudência.

R. Segundo a sábia observação de Aristóteles, a virtude é um meio termo entre dois vícios, que consistem de sua falta ou excesso. Julguei que a prudência, tal como a entendemos hoje, está entre a escrupularia, ou seja, o excesso de cuidados, e a obtusidade, a ação grosseira, descuidada.

6. Questão. Não se compreende logo o que foi dito sobre o “prazo para cumprimento de uma prova”.

R. Eu chamei o tempo de vida de "prazo para cumprimento de uma prova". Mas o tempo de vida não é só isso. O que importa é que o fato de ele também o ser gera uma complicação para qualquer mudança do momento da morte. Não se pode pensar que o tempo de vida existe apenas em função da prova, ou da preservação da espécie, etc.

6.1. Se Deus concede a vida ao Espírito para o cumprimento de uma prova, o mais coerente é que conceda mais tempo, se este se revelar pouco.

R. De novo: não se pode reduzir uma lei toda a outra; tudo se submete apenas ao bem geral. Aliás, não é nem necessário que o Espírito queira insistir na prova. Ele pode julgar que não vale a pena passar muito tempo na Terra apenas para corrigir determinado vício, ou para desenvolver certa virtude. Não veem os bons Espíritos a vida material como uma hospedaria de má qualidade? Quanto pior não parecerá então aos maus, que, apesar das satisfações terciordinas, são queixosos profissionais?



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